sábado, 12 de maio de 2012

DissolVida


Estiquei o passo para não pisar na poça cor de rosa. Foi por um tris. Parei para olhar meus pés e levantei um pouco a barra do vestido. O salto do meu lindo sapato roxo, revestido de camurça e veludo, ficaria destruído. Molhado, melado, impregnado daquele líquido viscoso. Um fio brilhante havia surgido da borda superior da poça e, com medo, fui seguindo sua extensão até chegar à barra do vestido. Com o movimento, o tecido úmido tocou a pele acima do meu tornozelo.

Raiva e nojo. Meu vestido, minha perna. Nem quis saber do meu sapato preservado. Que se danasse a Polliana e seu jogo do contente. Era ir segurando a saia até chegar ao curso e lavá-la no banheiro ou deixa-la arrastar no chão até que a sujeira e a terra do meu caminho se incorporassem ao líquido, formando uma massa endurecida e pegajosa, que tanto poderia ressecar e esfarelar durante toda a caminhada quanto formar uma lama nojenta que ficaria tocando minha perna – e meu sapato caro - enquanto eu continuasse a caminhada até o Espaço Cultural.

Voltei meus olhos ao objeto de minha ira. O lago rosado com manchas furta-cor. Uma bela forma ovalada, estragada pela barra do meu vestido. O palito estava lá, perpendicular ao risco formado pela junção do piso desbotado. Pelo ponto de vista da poça a tirana era eu. A gigante destruidora de margens. Afinal ela estava lá primeiro. Que culpa ela teria de a gigante não olhar por onde anda? Qualquer criança sabe que não se deve andar olhando para o nada, com a cabeça lá longe.

Criança. Antes de virar poça aquele líquido poderia estar refrescando alguma criança. Tão desatenta quanto a gigante. Palito sem identificação de marca. Picolé barato. Criança pobre. A mãe só tinha as moedas para aquele. E a criança na ânsia de sorvê-lo deve tê-lo derrubado após a primeira lambida – a poça era grande. Ou mora na rua e ganhou as moedas de algum motorista no semáforo e escapou do patrão que fica sentado em baixo da árvore, esperando o pagamento do aluguel do ponto: deu umas duas mordidas rápidas e jogou a maior parte, com medo de ser pego roubando. E ali, caído, sangrando até a morte, seus restos belos e pegajosos, sujando os passantes, nem um cachorro sarnento para lamber seus fluidos.

Fazia pouco tempo que havia tombado. Ainda brilhava. O calor do sol ainda não havia transformado seu líquido rosado numa mancha escura e cheia de dejetos. Dali a algum tempo seria pisado e espalhado. Várias pegadas ficariam ao redor do que antes era a poça. Ninguém mais saberia da perda daquela criança. Da criança pobre. Da pobre criança explorada. Que não tem nada e ainda perde o doce.
 
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O último do "Escrever Pra que
Dezembro de 2011

4 comentários:

judite disse...

Amei, vc viaja e nos leva junto!!

judite disse...

Amei! Vc viaja e nos leva junto!

judite disse...

Amei! Vc viaja e nos leva junto!

Anônimo disse...

Gostei, mas achei triste.

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