domingo, 6 de novembro de 2011

Cheirando lembranças

Mais um texto que fiz para o "Escrever pra que?".
Espero que as suas lembranças também cheirem bem.

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Num momento eu estava sentada no banco alto – o lugar preferido da Alice – junto à janela, aprendendo a ser uma dançarina da água com uma das heroínas do meu “livro de ler no ônibus”; no seguinte, estava em pé no jardim da casa da minha avó materna esperando meu irmão para irmos à aula. Enquanto aquele aroma adocicado me envolvia, fechei os olhos e ouvi o barulho do caminhão dos estudantes passando em direção ao Grupo Escolar da Rua do Comércio. A sensação foi aumentando, e escutei a algazarra dos meninos e os gritos da Arlete dizendo que eu estava atrasada. Até a brisa fria da noite soprou sobre mim, aquele ventinho gelado que vinha da serra e arrepiava os pelinhos do braço. Uma frescura doce, com pitadas de alegria e entusiasmo juvenil.

As flores brancas enchiam a copa baixa do arbusto que ocupava o lado esquerdo do jardim, embaixo da janela do quarto de Dona Maria Correia. Embaixo, havia uma moita de erva cidreira, que ela chamava de capim santo, ladeada por hortelã e outras plantas medicinais usadas em seus “lambedores”. Do lado direito, ficavam umas florzinhas amarelas, rasteiras, bem comuns no interior. Também era o lado onde estava plantada um tipo de trepadeira com pequenas flores cor de rosa, que se enroscavam acima do portão da rua, numa rústica estrutura de madeira, completamente escondida pela folhagem, formando um lindo arco na passagem para a área, com seus galhinhos pendurados aqui e acolá.

Vivenciei tudo isso nos segundos daquela parada de ônibus. Mas o aroma foi se dispersando, os cheiros do interior e da adolescência foram voltando para os seus lugares na colorida e perfumada tapeçaria da minha memória. Quando voltei a sentir apenas o cheiro do dióxido de carbono dos escapamentos e o som do trânsito matinal, abri os olhos. Procurei mas não encontrei – minha máquina do tempo estava em algum jardim de muro alto. Talvez tenha demorado demais para abrir os olhos, na tentativa de manter as lembranças vivas por mais tempo, porém tudo foi perdendo as cores conforme o ônibus avançava, seguindo pela avenida, em seu itinerário repetitivo. Funguei tentando limpar minhas narinas e me virei para o companheiro de banco, que cheirava a sabonete e cochilava, pendendo a cabeça para frente. Ele talvez também estivesse sonhando.

Qual seria o aroma dos sonhos do moço que cheirava a sabonete? Espantei o pensamento e tratei de esquecer os cheiros e sons desagradáveis do tráfego, voltando ao ponto onde lia sobre as desventuras transitórias da minha pequena dançarina da água e seu mundo medieval – que neste capítulo tem cheiro de terra e umidade – torcendo para conseguir terminá-lo antes de chegar ao ponto de descida, onde terminariam, temporariamente, as minhas viagens. Mas não todas elas.

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